Universidades: um desabafo
- Thaíke Augusto
- 10 de dez. de 2015
- 5 min de leitura

Escrevo porque preciso. Como secas lágrimas de palavras que já não agüentam o estado de solidez.
Não escrevo esta expressão/desabafo só pra mim, desta vez, pois percebo que minha voz é a voz de muitos... e talvez muitos possam se sentir falando também. E talvez este texto seja o trovão da multidão que expressa...
Da multidão que expressa que está cansada. Exausta. Esgotada de ter que lutar para manter vivo um querer e um sonhar que deveriam estar sendo alimentados ao invés de acuados, desencorajados e espancados. Multidão exausta de ter que fazer o parto do sentido, dia após dia, a fim de dar conta de seguir. Dar conta de levantar da cama, mais uma vez, mais uma manhã, mais uma semana que se inicia, mais um dia nublado, mais uma aula pouco útil. Mais uma aula que não se pode faltar, pois a lista de ‘freqüência’ é carrasca. ‘Freqüência’, sim, por que não mede presença. Aliás, por vezes expulsa a presença.
Cansados deste sistema doente, perverso, insano, violento. Que nos faz jogar um jogo em que qualquer de nossa escolhas leva a algum tipo de derrota desnecessária. Que despreza os recursos de tempo e energia de seus discentes como se fossem completamente descartáveis, como se ninguém construísse vida e valores à parte do ambiente artificial da sala de aula. Quatro horários de 50 minutos. Duzentos minutos em cada aula - 3 horas e 20 minutos - para cada aluno. Numa sala com 35 pessoas, isso reflete 7000 minutos que podem estar sendo desperdiçados: aproximadamente 116 horas. POR AULA. Sem contar as atividades e estudos outros. Com certeza há momentos que salvam, que valem a pena. Com alguns poucos professores, o tempo é investimento precioso. Com muitos outros poderíamos dizer, com generosidade, que aproveitamos metade do tempo de uma dessas manhãs e/ou tardes... eis o que desperdício reduz-se à “bagatela” de aproximadamente 58 horas. Quase dois dias e meio... por aula.
Ah... sim, nós estamos cansados... De um sistema educacional que quase só instrui – isto é, quando instrui. Cansados de aprender quase que só com os inversos: as não-lições, os não-exemplos, os não-saberes, os não-valores, os não-mestres. Valiosas aulas de currículo oculto: paciência, tolerância, silêncio, resignação, resiliência, empatia, fé, sabedoria... Valiosas, sim, mas, por Deus, há outros meios. Para além dos inversos, há formas de se educar com os versos, também. Educações poesias... Formas muito mais bonitas, integrais... reais.
Tenho sede e fome destas formas. Mais que formas: destes conteúdos. E é doloroso prestar entre 3 e quase 7 horas de aulas por dia e sair com fome e sede. Como beber água salgada. É doloroso descer a este poço, a cada nascer do Sol, e chegar em casa sedento... doloroso chegar e ter de vasculhar o sereno nas plantas do próprio quintal para sofregamente lamber umas gotas (ao menos nos lembra que há outros aqüíferos no mundo exterior e no mundo interior...).
Estamos cansados desses professores-poços que tem extensos lattes e experiências oceânicas e levam um conta-gotas pra dividir entre seus discentes. Professores-poço que se julgam doadores e não acreditam que os discentes possuam a própria água a partilhar. Professores-poços que gastam mais tempo e energia comparando entre si a cor e a química de suas águas que matando sedes. Professores-poços preocupadíssimos em dizer quais águas não beber sem ter, eles mesmos, nada a oferecer a nossa sede. Professores-poços que insistem em dizer que sua água é mais saciadora que a do outro. Professores-poço que só permitem aos seus orientandos beber e produzir de suas águas específicas. Professores-poço que fazem extensa fachada e propaganda de oásis pra encobrir seu deserto. Professores-poços que também estão sedentos... desidratados...
Vejo-os porque eu também os sou... cada um e todos. Porque compreendo cada cegueira alheia no meu olho cego.
E assim reflito também sobre os Alunos-poço. Que se acreditam terra seca... alunos-poço que são ensinados dia a dia que só terão água pra oferecer ao mundo quando se submeterem, por um punhado de anos, a certos contextos instrucionais. Alunos-poço que não terão sua água reconhecida até carregarem alguns papéis diploma escritos em letras garrafais “Sociedade curtiu isso”. Alunos-poço que caem tão fundo nesse ilusionismo doente que não percebem que estão bebendo água podre ou salgada. Alunos-poço que acreditam que morrer de sede é comum e aceitável. Que aplaudem o conta-gotas e fazem fila para receber sua parte. Que se empenham e se matam em suprir demandas de gotas especificas de seus docentes, ainda que estas não matem sua sede. Alunos-poço que recusam água limpa e abundante dos poucos professores que já entenderam que o fluxo da vida é de partilha. Alunos-poço que não tem idéia do que fazer com a própria liberdade e suplicam por grades e prisões. Alunos-poço que se enraivecem com estas tantas violências e recriam-na em suas palavras e atos, realimentando o monstro que os devora.
Vejo-os porque eu também os sou... cada um e todos. Porque compreendo cada cegueira alheia no meu olho cego.
Estamos cansados dessa universidade que não se permite ser universal... que divide os saberes e sabores da vida em gavetas etiquetadas, como se fosse possível compartimentar o universo, o cosmos, a vida. Como se pudéssemos assistir ao espetáculo da flor só com a biologia... como se pudéssemos buscar compreender o humano só com as ditas ciências humanas. Não não... eu sou ciência E filosofia E arte E religião. E sou humanas, sociais, agrárias, saúde, artes, exatas, linguísticas. Eu sou coisas que ainda não tem nome. Que ainda nem foram pensadas. Eu sou biologia, poesia, linguagem, química, música, física, dúvida, psicologia, teatro, história, arquitetura, espiritualidade, matemática, cor, fenomenologia, esperança, altar, astronomia, geografia, meditação, astrologia, robótica, pensamento, terra, teoria, sacralidade, fé, raciocínio, geometria, ar, virtudes, engenharia, certeza, loucura, literatura, prece, água, sentido, moral, ecologia, matéria, energia, computação... Eu respiro a diversidade e a unicidade. Eu sou e estou na Teia Cósmica de todos os saberes e sabores.
E embora corra fogo nestas palavras, não venho clamar pelo levantamento das armas de revolução, mas, antes, pelo rebaixamento das mesmas. Por que o novo se ergue por tornar o velho obsoleto, e não pela violência crua de destruí-lo. Porque a guerra deforma e a paz transforma. Não a pseudo-paz que é medo e submissão, mas a Paz que é verbo, ação. Do verbo Gandhiar.
Não clamo por armas e dentes porque não acredito nesta revolução exterior, que vem de fora do macro pro micro. Não acredito por que o sistema é feito por nós e a regra externa é projeção da interna. Não acredito porque, como já dizia o sábio poeta Gibran, os déspotas que buscamos derrubar estão erguidos em nós mesmos... e as leis que questionamos estão escritas por nossas próprias mãos em nossas testas. E as não-leis que clamamos existência estão igualmente ausentes em nossos corações.
Clamo, sim, por novos olhares. Novos sentidos. Novo sentir. Renovada empatia. Clamo por humanidade, humildade e tantas outras virtudes e valores que renegamos à sombra individual e coletiva. Clamo pelo despertar e aparecimento dos mestres em verso, mas não inversos. Clamo por mais autoconhecimento, mais meditação, mais preces, mais vibração, mais fé. Clamo por renovação interior. Clamo por respeito a cada ser humano como Universo vivo e particular, sem distinções, incondicionalmente. Clamo por menos competição e mais luta compartilhada. Clamo pela diversidade que é verdadeiramente diversa por respeitar a si mesma, pois o diverso que reduz é só um câncer.
Clamo para que as bocas se calem até que a Verdade interior, com V maiúsculo, transborde em canto e poesia. E deste canto re-orquestremos nossas salas de aula, nossos cursos, nossas universidades, nossa educação, nossas ciências, filosofias, religiões e artes. Nossas relações, nossa saúde, política, economia... nossa sociedade, nosso planeta, nossas vidas, nossa era.

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